Quando a “pauta” VTN distorce o ITR

Nos últimos ciclos, diversos municípios conveniados ao ITR passaram a publicar “pautas” de Valor da Terra Nua (VTN) e a utilizá-las como referência para autorregularizações. Em tese, a divulgação de parâmetros para que o proprietário do imóvel rural possa fazer a sua declaração não é um problema. Ele surge quando esses números são tratados como se refletissem o mercado local sem demonstrar como foram obtidos.

É nessa distância entre a transparência necessária e o uso automático da pauta municipal que, na prática, tem surgido inúmeras cobranças discutíveis Brasil afora. Essa prática, ao desconsiderar a necessidade de fundamentação e transparência metodológica na fixação do VTN, pode configurar um ato administrativo viciado e violar princípios fundamentais do direito tributário, como a legalidade e a transparência na base de cálculo de um tributo, conforme exigido pela legislação federal e por preceitos constitucionais.

O que está em discussão?

O Valor Terra Nua (VTN) é a estimativa do preço de mercado da terra nua em 1º de janeiro do ano-base, desconsiderando para o cálculo as benfeitorias e considerando aptidão produtiva do imóvel. É um conceito técnico e, para se sustentar, exige método. Dentre eles: origem dos dados, amostragem, critérios para seleção, justificativa para segmentação por aptidão e memória de cálculo que permita ao contribuinte a clareza para realizar sua declaração. A definição desse valor, que deve refletir o preço de mercado, exige a observância rigorosa das normas e atos federais que disciplinam o ITR, mesmo quando a fiscalização é delegada aos municípios. Tal delegação não convalida procedimentos que careçam de transparência metodológica ou que não sigam padrões técnicos reconhecidos para laudos de avaliação, como a ABNT NBR 14.653-3.

Quando a publicação municipal se limita a três espécies de valores e à expressão “apurada por método comparativo”, faltam, senão todos, a maioria dos elementos de controle dessa apuração. A consequência é conhecida: controvérsia sobre a adequação do VTN e, por arrasto, sobre a própria base de cálculo do Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR). Nesse contexto, a mera divulgação de valores via portarias ‘enxutas’, sem explicitar a metodologia de sua formação e sem respaldo em norma municipal formalizada com força de lei, esvazia a legitimidade do Sistema de Preços de Terras (SIPT) e compromete a validade da base de cálculo do ITR.

Alguns sinais de alerta ajudam a identificar a fragilidade da pauta de valores apresentada pelo munícipio: valores idênticos em anos consecutivos; altas abruptas após longos períodos; períodos de coleta de dados que extrapolam a data-base de 1º de janeiro; ausência de mapas de aptidão. Em conjunto, esses sinais indicam um possível descumprimento das condições técnicas previstas no convênio ITR. Tais inconsistências não apenas levantam dúvidas sobre a adequação dos valores, mas também podem sinalizar o descumprimento do arcabouço regulatório federal que rege a delegação da fiscalização e cobrança do ITR, que impõe ao município conveniado a observância da legislação federal de regência do tributo e dos atos da Receita Federal.

Efeitos práticos

Para os produtores, o impacto é direto: notificações de autorregularização e lançamentos com base na pauta elevam o risco de um recolhimento acima do devido. Para o município, pautas mal documentadas tendem a aumentar litígios, perda de arrecadação e impacto de credibilidade que os administradores locais têm com os produtores, além de retrabalho na interlocução com a Receita Federal. Adicionalmente, a imposição de multas arbitrárias e desproporcionais sobre supostas diferenças, sem garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, configura uma violação direta de garantias constitucionais do contribuinte.

Contudo, a experiência mostra que é possível reorganizar essa relação com:

  1. Transparência do lado público: O município deve disponibilizar o laudo que embasou a pauta, com os critérios e amostragens adotadas, permitindo o controle, principalmente para que o contribuinte consiga atribuir corretamente o seu VTN. Essa obrigação de transparência não é meramente procedimental, mas um requisito essencial para a validade do ato fiscal, evitando que o arbitramento se dê sem a devida motivação legal e metodológica.
  • Prova técnica pelo contribuinte: Ainda que a pauta de valores publicada sofra de descredibilidade pelos contribuintes impactados, o contribuinte deve apresentar laudo individual elaborado por profissional habilitado, com metodologia clara, tirando a discussão do terreno da opinião para critérios técnicos e verificáveis.  Preferencialmente, esse laudo deve seguir normas técnicas reconhecidas e amplamente aceitas, como a ABNT NBR 14.653-3, servindo como uma contraprova robusta frente a um SIPT municipal sem fundamentação pública.
  • Escala via entidade representativa: Os sindicatos rurais, por exemplo, podem conduzir estudos municipais, por meio de amostragens robustas por microrregiões e segmentos de aptidão. O material serve como elemento para conversas técnicas com a administração local, e, se necessário, como base para proteger os filiados contra o uso automático de uma pauta insustentável. A atuação coletiva de entidades representativas se mostra fundamental para a defesa de direitos e garantias dos produtores, impulsionando a revisão de atos fiscais arbitrários e a busca por uma tributação do ITR justa e em consonância com a realidade de mercado e com o arcabouço legal pertinente.

Com isso, ganha não só o contribuinte com maior segurança na formação do valor de base do ITR, mas, principalmente, o município com redução de litígios, melhoria na qualidade da informação remetida à Receita e previsibilidade na arrecadação. É razoável afirmar que quando o laudo é bem elaborado e a documentação é pública, os valores tendem a ser aceitos sem maior controvérsia.

Para o produtor é importante manter organizada a documentação da área, além de obter laudo individual de avaliação e responder tempestivamente às comunicações do fisco e com base em documentação técnicas, a fim de evitar lançamentos de ofício e as respectivas multas. Em último caso, quando o fisco imotivadamente recusar os elementos apresentados, seguem-se às instancias administrativas e, se necessário, judiciais. Nesses cenários, a via administrativa deve ser exaurida e, persistindo a discordância, o contribuinte pode recorrer ao Poder Judiciário. A jurisprudência dos tribunais superiores tem reiteradamente desqualificado o arbitramento da base de cálculo de tributos quando realizado sem processo regular, motivação adequada e transparência metodológica, assegurando ao contribuinte o direito à ampla defesa e ao contraditório em todas as fases, e reconhecendo o foro federal como o competente para discussões sobre o ITR.

Este não é um debate sobre pagar menos, mas sobre pagar corretamente, onde se inclui o valor condizente com a realidade. A pauta municipal é útil quando traduz o valor de mercado e se presta a fazê-lo de forma transparente. Quando não o faz, cria incentivo para o inadimplemento e instauração de litígio, o que não interessa ao contribuinte, tampouco à administração pública. Portanto, se o seu município publicou recentemente uma pauta resumida e surgiram dúvidas sobre sua aderência à realidade local, há caminhos institucionais, técnicos e judiciais para sua recomposição. É essencial recolocar o VTN de forma transparente em relação a sua formação, respeitada a diversidade, seja de aptidão ou de produção, das microrregiões municipais, de forma a refletir o real valor de mercado, trazendo segurança e previsibilidade para quem produz e para quem arrecada.


Leandro Mirra, Sócio das práticas de Agronegócio e Direito Imobiliário do escritório Nelson Wilians Advogados.

Alberto Carbonar, Sócio da prática de Direito Tributário do escritório Nelson Wilians Advogados.

João Vitor Sanches, Associado da prática tributária do escritório Nelson Wilians Advogados.

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