Nos últimos anos, tem-se observado um protagonismo crescente do Supremo Tribunal Federal (STF), em especial por meio da atuação do ministro Alexandre de Moraes, em matérias que, tradicionalmente, seriam de competência do Poder Legislativo ou mesmo do Executivo. Essa expansão interpretativa e prática das atribuições constitucionais do Judiciário levanta importantes questionamentos sobre os limites do poder e os riscos que tal postura representa à ordem institucional brasileira.
I. Separação de Poderes: Pilar do Estado de Direito
A Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 2º, o princípio da separação dos poderes, segundo o qual os Poderes da União são independentes e harmônicos entre si: Legislativo, Executivo e Judiciário. Trata-se de cláusula pétrea, consagrada para impedir a concentração de poder e preservar a estabilidade democrática. Cada Poder possui funções típicas, ainda que possam, em determinados momentos, exercer funções atípicas, dentro dos limites constitucionais.
A atuação reiterada de um membro do Supremo extrapolando os limites das competências jurisdicionais, ao iniciar e conduzir inquéritos, determinar prisões, censurar manifestações públicas e impor medidas que afetam diretamente o funcionamento dos demais poderes, pode configurar, sob análise técnico-jurídica, uma usurpação de competências, o que afronta o pacto federativo e compromete a segurança jurídica.
II. A Origem da Crise: Os Inquéritos de Ofício
A instauração dos inquéritos 4.781 (“das fake news”) e 4.874 (“atos antidemocráticos”), ambos de ofício e sob relatoria do próprio ministro Alexandre de Moraes, representa um marco na expansão do ativismo judicial. Embora a gravidade dos fatos investigados não se discuta, o meio processual utilizado escapa dos parâmetros legais e principiológicos do processo penal acusatório, previsto no artigo 129, inciso I, da CF/88, que reserva ao Ministério Público a titularidade da ação penal pública e ao Judiciário o papel de órgão julgador, não investigador.
Ao acumular funções de vítima, investigador, acusador e julgador, o STF, por meio de seu ministro, compromete a imparcialidade do processo e gera uma assimetria institucional grave. Tal conduta coloca em xeque o devido processo legal (art. 5º, LIV), o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV), criando um cenário de insegurança jurídica incompatível com um Estado Democrático de Direito.
III. O Risco da Personalização do Poder Judiciário
A centralização de decisões em um único ministro e a personalização de sua atuação transformam o que deveria ser um tribunal colegiado em uma instância monocrática de poder. Em um sistema democrático, a legitimidade das decisões judiciais advém não apenas de sua legalidade, mas de sua conformidade com os princípios da imparcialidade, da colegialidade e da impessoalidade.
A figura de um ministro que concentra, de forma reiterada, poderes para legislar por decisões judiciais, censurar meios de comunicação, remover parlamentares eleitos e restringir liberdades fundamentais, sem respaldo direto em lei formal, desequilibra o sistema republicano e gera um precedente perigoso de arbítrio institucional.
IV. Consequências da Insegurança Jurídica e Institucional
A continuidade dessa postura, sem o devido controle interno ou externo, abre caminho para um Estado de exceção judicializado, no qual a norma é constantemente moldada à vontade de quem julga, e não à letra da Constituição. Isso compromete investimentos, atinge o ambiente político e social, e mina a confiança nas instituições.
A insegurança institucional não se dá apenas pelo temor de arbitrariedades, mas pela percepção de que as garantias fundamentais podem ser relativizadas conforme a conveniência política do momento. Em vez de um Judiciário como baluarte das liberdades, passa-se a ter um órgão que atua como censor e gestor de narrativas.
V. Considerações Finais
É imprescindível que os freios e contrapesos (checks and balances) entre os Poderes sejam restabelecidos. A atuação do STF deve ser respeitada em seu papel constitucional de guardião da Carta Magna, mas isso não pode servir de escudo para extrapolação de competências ou para o exercício de funções incompatíveis com sua natureza jurídica.
O Estado Democrático de Direito não admite exceções permanentes nem poderes absolutos. É dever dos juristas, parlamentares, e da sociedade civil organizada refletir e agir dentro da legalidade para reestabelecer o equilíbrio institucional, sob pena de entrarmos em uma perigosa era de instabilidade e descrença na própria democracia.